“A justiça sustenta numa das mãos a balança que pesa o direito, e na outra, a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito” - Rudolf Von Ihering



terça-feira, 10 de novembro de 2015

Quando estou dentro da prisão, sinto a importância de meu trabalho

Surrupiei o artigo que segue do site Justificando.

- Meu processo está parado na sua mesa doutor, faz uma semana. Já estou no direito de ir para o aberto e ainda estou aqui.
- E o meu doutor está parado faz um mês, o Promotor já foi favorável, eu tinha que estar solto.
Era uma manhã nublada de sexta, feriado para os servidores públicos, e o Fórum estava fechado. Resolvi aproveitar para ir na Penitenciária e inspecionar o setor do regime semiaberto, com cerca de 170 detentos. Não que fosse viciado em trabalho, longe disso, pois sempre procurava deixar o trabalho no local de trabalho. Porém, fazia algum tempo que não ia naqueles pavilhões. As visitas em unidades prisionais sempre são difíceis, de certa forma exaustivas. Nelas o juiz precisa deixar clara sua função, de juiz. Mas ao mesmo tempo deve ter sensibilidade, olhar nos olhos, ser honesto para com o que poderá e o que não poderá fazer a respeito da pena e do seu cumprimento. Também precisa ter consciência de que além dos detentos existem servidores que ali trabalham e que também devem ser ouvidos. Por isso, usar o feriado para fazer essa visita me pareceu ideal. E lá fui eu e a assessora para a zona sul da cidade. Ao chegar na unidade prisional primeiro fiz uma breve conversa na direção. Depois fui direto nas quatro galerias onde ficavam os detentos do regime semiaberto. Logo que anunciada minha presença, como sempre, a correria aconteceu. Eram presos colocando a camiseta, calçando chinelos, pegando anotações e assim por diante. Em pouco tempo estavam agrupados próximos da grade (sempre ela) que os separava do juiz e do mundo livre. Cumprimentei a todos e desta vez distribuí formulários, um para cada, para que anotassem os pedidos que tinham. Expliquei como preencher, repeti algumas vezes. Tudo esclarecido, como sempre muitos quiseram ainda assim falar comigo. E os ouvi. Dentre eles os dois que diziam estar no direito de ir para o regime aberto (trabalho durante o dia e recolhimento domiciliar durante a noite). 
- Não pode ser. Nenhum processo onde o apenado está com tempo para ser solto fica na minha mesa mais de um dia - respondi de pronto.
- Mas está doutor, pode ver - insistiu um deles.
- Não está, deve haver alguma outra situação que precisa ser resolvida, um processo faltando etc. Mas vou sair daqui, vou lá na direção acessar o sistema pela internet e voltarei aqui antes de ir embora para dizer o que está acontecendo. Isso não pode estar certo - tinha que resolver aquilo. Era uma questão de honra para mim.
- Está bem doutor - um falou pelos dois.
Despedi-me de todos e pedi para retirarem quatro representantes dos presos, um por galeria, para, juntamente com a direção e servidores, avaliar as questões gerais da unidade. São métodos que uso para consolidar o diálogo e fortalecer o comprometimento conjunto para com o cumprimento da lei.  A reunião foi dentro do esperado. Pedidos de trabalho, alguns problemas com alimentação, vestuário. Houve até pedido de colocação de areia num campinho de futebol que fica aos fundos do prédio. O problema mais sério encontrado foi de infiltração de água da chuva em algumas celas e também necessidade de reparos hidros sanitários. 
Nessas horas, quando estou dentro da prisão, sinto a importância de meu trabalho e minha função. Sentar-se numa confortável cadeira num gabinete com ar condicionado pode levar o juiz, defensor, delegado, promotor e todos que trabalham com o sistema de justiça criminal a esquecer que tratam de vidas humanas, vidas afetadas pela suas canetas. Para o juiz é certo que processos precisam ser encaminhados, decididos, sendo o trabalho em gabinete sua principal atribuição. Mas transpor essas muralhas burocráticas, especialmente nas áreas de cunho mais social, e ver como a vida acontece é também importante. No meu caso, juiz da execução penal, pisar no chão de uma unidade prisional sempre me traz para a realidade da vida. Por mais que na Penitenciária onde eu estava as condições fossem melhores que as em geral eu encontrava por esse país (não havia superlotação, o trabalho era em maior número, havia possibilidade de estudo, o ambiente tinha alguma higiene, a alimentação era regular), aquele local nunca deixaria de ser uma prisão. E, depois de tantos anos trabalhando com o direito penal, ainda não tinha me acostumado com a prisão. Na realidade esperava nunca me acostumar. O ser humano não foi feito para a prisão, a violência não se combate com a prisão, o desenvolvimento da alteridade, respeito e noção de cidadania não se aprofundam com a prisão, o resgate das vítimas da violência não acontece com a prisão do seu algoz. As prisões em massa (hoje são mais de 600.000 presos no Brasil, quando no início do século não passavam de 250.000) tem ido de encontro ao processo histórico de construção e conquista dos direitos humanos e dos fundamentos democráticos do estado de direito. Com isso eu jamais me acostumaria, jamais. Mas era preciso ir em frente.
- A internet do Poder Judiciário teve problemas, não consegui ver como estão os processos de vocês - Eu havia voltado nas galerias para dar satisfação aos dois detentos questionadores. Tínhamos tentado entrar no sistema para ver os processos e não conseguimos. Até o plantão da central de processamento de dados do Fórum eu acionara através de outro assessor que ficara no gabinete. Sem sucesso.
- Mas escute o que eu estou falando - e olhei firmemente para os dois detentos - segunda é feriado, dia 2 de novembro. Pois eu me comprometo que na terça-feira vocês dois receberão um documento assinado por mim, onde haverá uma explicação sobre o motivo pelo qual vocês ainda estão presos. E se já estiverem no direito, como dizem, na terça mesmo sairão. Vocês confiam em mim?
- Confiamos doutor, obrigado - responderam os dois ao mesmo tempo, levando a mão através das grades para me cumprimentar.
Dostoievski dizia que a melhor forma de medir o grau de civilização de um país era conhecer, por dentro, suas prisões. Como isso continua verdadeiro!
João Marcos Buch é Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville - SC.