“A justiça sustenta numa das mãos a balança que pesa o direito, e na outra, a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito” - Rudolf Von Ihering



sexta-feira, 20 de maio de 2011

O vergonhoso defeito de nascença



Por Afif Jorge Simões Neto,
juiz de Direito (RS).


Sempre acreditei, quando ainda estudava para o concurso de ingresso à magistratura, que sentença tem que ser cumprida. Se não for, não é sentença. Quem não gostou, que recorra, pois é para isso que existem os tribunais de Porto Alegre e os superiores, em Brasília.

Na minha posse como juiz de Direito, tinha de general de Exército a governador do Estado compondo a mesa das autoridades constituídas. E justamente o Poder Executivo é o primeiro a não dar a mínima pelota para as ordens judiciais. Parece sentir um prazer mórbido em empurrar com a panturra as suas dívidas judiciais rumo ao valetão sem fundo dos débitos por quitar. É a legalização do calote em seu estágio mais asqueroso.

Agora, tem o seguinte: se eu não puder recolher o IPVA do carro na data estipulada, e se tiver a urucubaca de ser parado numa blitz de trânsito, um guincho vai colocar no lombo o meu autinho mimoso e removê-lo para o depósito, e depois eu que me vire para descobrir o paradeiro. Para fechar a rosca do caixão, o resgate da condução ainda fica condicionado ao pagamento da multa, do guincho e da estadia.

Mas que democracia é essa em que o Estado vira as costas para os julgamentos, mas nos obriga a obedecer ao que ele determina?

Como falou um desembargador gaúcho dia desses, “quem não paga o que deve não pode cobrar o que lhe é devido”.

De que adianta o juiz lançar uma decisão comprometida com a lei, considerada justa e equânime, mas com a mesma utilidade que tem hoje a oposição no Congresso Nacional? Ficariam essas determinações judiciais endereçadas à Fazenda Pública mais apropriadas em molduras na parede, ombreando com os retratos dos avós que enfeitam as salas dos contribuintes.

Na verdade, o Estado tem um vergonhoso defeito de nascença: não é chegado a pagar suas contas quando o credor é um cidadão. Assume que deve, dá desdobre de ´calaveira´, e a satisfação do crédito só virá quando lhe der na telha, conduta também conhecida nas hostes palacianas como a tal vontade política. Tornou-se especialista na arte do ´migué´ em pessoas do bem e que ainda acreditavam na justiça dos homens.

Abanca-se governo, debanda governo corrido pelas urnas, e os aposentados e pensionistas do Ipergs, por exemplo, continuam a luta inglória na busca dos precatórios e requisições de pequeno valor a que têm direito de longa data. Um calvário que dá pena e raiva ao mesmo tempo. Mas eu até entendo as preocupações dos dignitários: primeiro de tudo, as construtoras, os empreiteiros, gente que colaborou com dinheiro grosso na campanha; eles, os jubilados, podem esperar. E que não percam jamais a esperança: caso apareça um câncer, terão preferência absoluta na fila dos precatórios.

Tudo o que me ensinaram lá atrás de nada vale mais agora. Valha-me Deus com urgência de um ´upgrade´ cerebral.

Ah, e uma última observação: se os atilados leitores do Espaço Vital acharem que fui sarcástico em alguma passagem deste texto, acertaram na tampa. Na minha idade, não tem muita escolha: é a ironia ou o infarto agudo!

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