“A justiça sustenta numa das mãos a balança que pesa o direito, e na outra, a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito” - Rudolf Von Ihering



sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Verdade Real


Montserrat Martins*

Júri popular com cobertura midiática costuma ser lugar de muito sensacionalismo, onde prevalece a máxima do Barão de Itararé de que o Direito é “uma forma de competição para ver quem tem o melhor advogado”. No julgamento sobre a trágica morte de Eloá, no entanto, algumas questões mereceriam uma reflexão aprofundada: Que tipo de negociação estava sendo feita, sob controle de quem? Que tipo de negociador permite que o sequestrador dê entrevistas para a TV ao vivo durante o sequestro, como aconteceu nesse caso?  A vítima estava viva quando a polícia invadiu o local? Se estava, deveria ter havido a invasão? Questões em aberto que deveriam servir como reflexões, estudos e lições para impedir futuras tragédias.

Estas questões não estão sendo aprofundadas neste júri (com a mídia seguindo o velho filão sensacionalista de explorar o sofrimento dos familiares da vítima), mas pelo menos um debate jurídico interessante surgiu, o da “verdade real”. Não é redundância: é termo jurídico para distinguir de “verdade formal”, a qual decorre de que “o que não está nos autos não está no mundo”. O juiz só pode julgar de acordo com o que consta no processo, sem considerar por exemplo o que “se fala” fora dele. Isso tem uma razão de ser que é o direito de ampla defesa: é preciso que todos argumentos e provas da acusação apareçam nos autos. A verdade formal aparece em artigos do Código de Processo Civil tais como o art. 319, segundo o qual se o réu não contestar a ação, serão presumidos verdadeiros os fatos alegados pelo autor.

A “verdade real” (ou verdade material), em contraponto à verdade formal, é princípio relevante do Processo Penal pois determina que o fato investigado no processo deva corresponder ao que está fora dele em toda sua plenitude, sem qualquer artifícios, sem presunções ou ficções. Aqui há uma diferença importante entre o Processo Penal e o Civil, pois no Civil o Estado-juiz se coloca em posição mais “neutra” diante das partes, deixando a cargo destas produzirem as provas que irá julgar: é o predomínio da verdade formal. No Direito Penal, em contraste, o interesse ultrapassa a esfera privada, há o interesse público em estabelecer a verdade dos fatos e apurar responsabilidades, em defesa do bem estar mais amplo da sociedade, que vai além dos interesses das partes. Assim é que um crime (o que é fácil de entender quando há morte) não depende mais da vítima ou da família da vítima para moverem a ação, é o próprio Estado quem a move através da denúncia do Ministério Público.

Distinções como essas entre verdade real ou formal, entre matéria civil ou penal, interesse privado ou público, merecem um debate social mais amplo que os operadores do Direito. Por analogia, este Congresso Nacional divorciado dos interesses e anseios populares que temos hoje não será fruto de um modelo político ligado à “verdade formal” ao invés da “verdade real”? Basta ver como tudo “acaba em pizza” em Brasília para escancarar a vitória do formalismo sobre a realidade. Seja qual for o tipo de reformas que se proponham, para o sistema político ou para o combate ao crime organizado, terá de se levar em consideração o inimigo público número 1, o burocratismo (formulismo, formalismo) criado e mantido exatamente para manter tudo como está. Ou até para provar que “não há nada que não possa piorar”, como é o caso dos ataques em curso às leis ambientais.

*Psiquiatra

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