Está sendo gestado no Congresso Nacional um novo Código de Processo Penal. O atual é de 1941 e desagrada acusação, defesa e os próprios julgadores. Nos últimos meses, muitos pontos do anteprojeto foram discutidos, sobretudo o que trata do juiz de instrução, responsável exclusivamente pela investigação, mas não participa do julgamento. O advogado Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, conhecido processualista na área penal, participou da comissão do Senado para elaborar o anteprojeto e avisa: não dá para pensar o novo código com a cabeça no anterior.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Jacinto Coutinho explica que o ponto primordial do anteprojeto é adequar o processo penal à Constituição. Para isso, é preciso mudar o sistema inquisitório, que tem como característica a aproximação do papel do juiz com o do Ministério Público na busca das provas.
Segundo o advogado, o anteprojeto define as incumbências de cada um. “Com a mudança no papel do juiz, necessariamente, o Ministério Público ganha um novo lugar, que aparentemente é o que ele já ocupa hoje. Só que, hoje, como o juiz pode ter a iniciativa de ir atrás das provas, há sobreposição de funções.” Para Coutinho, é preciso mudar a cultura inquisitorial que faz parte da formação das pessoas em geral. “Imagino que, se o código vingar, em 10 anos nós teremos uma outra cultura solidificada.”
O advogado explica as mudanças que se pretende. Segundo ele, há uma reduçao quantitativa do número de recursos, mas uma ganho qualitativo. Com recursos funcionando bem, diz, há menos carga para os tribunais, principalmente os superiores, hoje abarrotados de pedidos de Habeas Corpus. “Pela própria natureza, o Habeas Corpus, em geral, acaba não sendo apreciado devidamente. No geral, quem tem bons advogados acaba usando o Habeas Corpus e dá certo. A grande massa dos réus tem dificuldade até para ter advogados.”
Jacinto Coutinho reconhece que o sistema hoje acaba fazendo com que a punição recaia sobre os mais pobres, mas critica quem tenta equilibrar a balança com a punição dos ricos, só pelo fato de serem ricos. “Estamos reclamando de que se tem punido os pobres sem cumprir a Constituição. Vamos punir os ricos sem cumprir a Constituição também? Não tem sentido.” Coutinho é professor titular de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Paraná, conselheiro da OAB pelo Paraná e procurador do Estado.
Leia a entrevista
ConJur — Quais mudanças o anteprojeto do novo Código de Processo Penal propõe?
Jacinto Coutinho — A modificação substancial é no próprio sistema. Hoje, o sistema é inquisitorial, fundado no Código de 1941, cópia do Código Rocco, de 1930, que, por sua vez, é uma deformação do Código Napoleônico de 1808. O Código atual é a expressão do mecanismo utilizado na velha estrutura ordenatória, influenciada pelo processo canônico. Esta estrutura nasceu com a Igreja e se estende até hoje. É um sistema de processo propositadamente desigual. Ele favorece o desnivelamento dos órgãos. Privilegia um e reprime outro. A escolha do sistema é política: ou se permite ao juiz buscar o conhecimento ou faz com que as partes levem o conhecimento ao juiz. Esta é a diferença fundamental entre os sistemas inquisitorial e acusatório.
ConJur — Não é melhor o juiz comandar o processo e buscar o conhecimento sobre o crime?
Jacinto Coutinho — Aparentemente é, porque ele tem um domínio maior do que é feito. Mas isso é um desastre, pois a tendência natural das pessoas é decidir primeiro e depois buscar o conhecimento suficiente para justificar as suas decisões. Isso é muito perigoso, mesmo que a pessoa não aja por mal. O sistema inquisitorial foi criado para ser assim. Quando a Igreja o criou foi para combater tudo aquilo que era contra o pensamento dela.
ConJur — E o que o anteprojeto propõe?
Jacinto Coutinho — Simplesmente colocar o processo em absoluta compatibilidade com a Constituição Federal. Isso é a grande força doa proposta elaborada. Apenas a estrutura acusatória, com um juiz que não produza provas, é compatível com a Constituição. Do jeito que está, o Código está em desacordo com o texto constitucional. A Constituição estabelece o lugar do juiz e dá garantias ao cidadão. O juiz pode decidir, se for o caso, contramajoritariamente para garantir o cidadão contra o todo. Ele faz isso pelos princípios que regem a Constituição, como o da dignidade humana e da isonomia, por exemplo. O processo democrático é aquele que pode ser aplicado a todos. Se tiver que condenar, condena. Não importa se é rico ou pobre. Do jeito que está, há uma preferência pela condenação dos pobres, que não têm de ser absolvidos só porque são pobres. Não é disso que se trata. Mas não dá para imaginar que só porque a pessoa tem dinheiro não comete crime. Nem porque é pobre é que comete. Quem cometeu o crime, se tiver que ser punido, será. Hoje, a regra não tem sido essa. Expor o conhecimento ao juiz é exatamente para que ele tenha isenção suficiente e possa atingir quem deve ser atingido e proteger quem tem de ser protegido. A regra tem que ser clara para que se possa cumprir a Constituição.
ConJur — É difícil o juiz determinar a constituição de provas e, ao mesmo tempo, julgar com isenção?
Jacinto Coutinho — O problema não é julgar. Os juízes fazem um grande esforço para julgar bem. O sistema é torto, entre outras coisas, porque a investigação preliminar é inquisitorial, ou seja, é levada primeiro pelas ideias e hipóteses e, depois, pelos fatos. O juiz tem que ir atrás das provas e é natural que ele tenda a decidir, não só por conta dos fatos, mas por outros fatores, como preconceitos, por exemplo. São seres humanos. Qualquer um que ficar em seu lugar pode fazer o mesmo. O sistema só ajuda a incrementar esse tipo de situação.
ConJur — O juiz está preparado para um sistema diferente?
Jacinto Coutinho — Não. Todos nós, de uma maneira geral, somos treinados dentro de um sistema inquisitorial. Por isso o anteprojeto sofre tanta resistência. As pessoas têm grande resistência ao novo. Só que, dentro da Constituição, não há outra opção. A Constituição é que estabeleceu uma base diferenciada, mas a cultura inquisitorial faz parte da nossa formação. Às vezes, imagens e fofocas valem mais do que os fatos. Pela Constituição, não deve ser assim. Logo os juízes vão descobrir que, dentro da Constituição, não é a função deles correr atrás de prova. Valerá a regra do processo: quem acusa, prova. Ou os juízes vão virar acusadores ou vão perceber que é muito melhor estar nesse lugar de julgar. É melhor para eles e para nós. O juiz vai decidir a favor ou contra, mas será isento, pelo menos, de toda a influência que pesa sobre ele hoje. É muito difícil isso ser feito no atual sistema porque o juiz é empurrado na direção oposta.
ConJur — O senhor disse que, hoje, a punição recai principalmente sobre os pobres. Não existe, até por conta dessa constatação, uma tendência contrária de querer punir os ricos para tentar equilibrar?
Jacinto Coutinho — Ir ao outro extremo é tão injusto quanto o mecanismo atual. Pensar que punimos os pobres e, agora, puniremos os ricos é trocar seis por meia dúzia. É preciso punir os culpados sejam pobres ou ricos. Não parece ser justo, em um país tão desigual quanto este, punir, preferencialmente, os pobres. É um problema na estrutura. É neste aspecto que é preciso uma Justiça equilibrada. Estamos reclamando de que se tem punido os pobres sem cumprir a Constituição. Vamos punir os ricos sem cumprir a Constituição? Não tem sentido.
ConJur — O senhor disse que o anteprojeto muda o papel do juiz. Como fica o Ministério Público com essa mudança?
Jacinto Coutinho — Pelo anteprojeto, a prova é feita para levar o conhecimento ao juiz, sem que ele tenha iniciativa de correr atrás dos elementos probatórios ou fazer papel investigador. Com a mudança no papel do juiz, necessariamente o Ministério Público ganha um novo lugar, que aparentemente é o que ele ocupa hoje. Só que, hoje, como o juiz pode ter a iniciativa de ir atrás das provas, há uma sobreposição de funções. O juiz está fazendo o papel que é do Ministério Público. Não está em questão, mas sequer faz sentido, por exemplo, eles ganharem o mesmo salário. Evidentemente que, do ponto de vista de funções, a do juiz está muito mais sobrecarregada.
ConJur — Então o Ministério Público ganha força com o anteprojeto?
Jacinto Coutinho — Ganha uma importância transcendental porque vai encabeçar a ação. Com isso, o Ministério Público deverá dar conta da acusação e produzir provas que sejam capazes de levar à condenação. Se isso não for feito e ficar uma dúvida razoável, o juiz deve absolver. Claro que o Ministério Público tem papel de destaque no país de modo tal que vem ganhando independência e condições de formular acusações contra os mais poderosos e, se tiver fatos e provas, levar à condenação. Coisa que não raro, hoje, ele não consegue fazer. Há muita dificuldade por conta dos meandros do próprio sistema que fecham as portas para ele. Imagino que, com as mudanças propostas, o Ministério Público vai ter mais trabalho, pois terá de estar mais atento, mas os promotores ganham para isso e estão capacitados para tanto. Eu tenho a esperança de que mude também a cultura do Ministério Público. Hoje, muitos não têm um grau de maturidade constitucional adequada. Não é só acusar por acusar. Isso também é cultural e sempre vem com o tempo.
ConJur — O anteprojeto acaba com a polêmica sobre o papel investigatório do MP?
Jacinto Coutinho — Constitucionalmente, a investigação preliminar é feita por órgãos que a lei determina. A investigação de crimes na Constituição está vinculada à atuação da Polícia Judiciária, no âmbito federal e estadual. Toda a investigação é preliminar ao processo para saber se há condições necessárias para ajuizar a ação. A lei estabelece que outros órgãos podem investigar crimes, mas não há previsão para o Ministério Público, senão nos casos de crimes cometidos pelos próprios órgãos do MP. É preciso criar mecanismos de interpretação que levem a outra conclusão. Até pouco tempo ninguém duvidava de que cada um cumpria sua missão. Eu mesmo acho que a estrutura deve ser acusatória, com o Ministério Público sendo o senhor da ação. Ele deve, por exemplo, ter controle do que se investiga porque, se a investigação for insuficiente, não tem como acionar o Judiciário e o trabalho do MP estará comprometido.
ConJur — O anteprojeto modifica isso?
Jacinto Coutinho — A comissão chegou à conclusão de que era melhor manter a investigação com a Polícia, com um controle externo do Ministério Público, tal como prevê a Constituição. Não há exclusividade da Polícia, mas só fazem investigação os órgãos que a lei estabelece. Não há nenhuma lei onde esteja escrito que o Ministério Público vai fazer um outro tipo de investigação com outra finalidade. Tanto que a Constituição prevê que, nas hipóteses de crime, o MP requisite à Polícia e depois acompanhe. Eu mesmo não me envolvi nessa discussão porque, do ponto de vista acusatório, o MP sai do lugar que eles ocupam. Claro que fica meio complicado, por exemplo, eles escolherem os crimes que querem investigar. O que tem causado muita polêmica é isso. E não tem produzido o efeito que devia produzir em investigações recentes. Muito da falta de resultado diz respeito não só às más condições com as quais eles investigam, mas à própria qualidade da investigação que eles têm feito. Eu sou cético quanto a esse ponto, mas a realidade mostra uma situação delicada, que balança os juízes e os ministros, quando se trata de crimes cometidos por policiais e que são investigados pela própria Polícia. Não estou falando de lei, estou falando da vida. A vida empurrou para essa situação.
ConJur — O Pedro Abramovay [secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça] disse, em um evento recente, que antes de se fazer uma reforma do Código, deveria haver um tempo para que as minirreformas tivessem mais tempo de aplicação.
Jacinto Coutinho — Claro que não. Nada contra o Pedro, meu amigo que gosto e respeito. O problema das reformas parciais é que o defeito começa pelo sistema. Em um conjunto, mexer em um elemento produz efeito no sistema inteiro. O que acontece com as reformas parciais é que se mexe em um ponto, mas não consegue calcular o efeito que vai produzir no todo. Com isso, acaba consertando um ponto e desarrumando outro. Da forma como o código está hoje é algo impraticável porque, simplesmente, não tem condição material para operar.
ConJur — O senhor acha que as pequenas reformas pioraram o Código?
Jacinto Coutinho — Acho que muitas delas pioraram excepcionalmente o código, de modo a chegar nesse colapso a que se chegou. Exemplo clássico está na reforma de 2008, que dentre enormes inconstitucionalidades patentes, só reforçou o sistema inquisitorial, que é o que estamos vivendo. Isso é uma tragédia. As comissões que fizeram as reformas incluíram pessoas muito boas, especializadas, mas não dá mais. O código virou um grande remendo que não funciona. Se funcionasse, paulatinamente, daria para colocar um remendo, mas não foi assim que aconteceu, daí a necessidade de uma reforma global.
ConJur — Como fica a questão dos recursos no anteprojeto? A proposta é diminuir a quantidade de recursos?
Jacinto Coutinho — Os recursos mudam para, tecnicamente, ficarem mais adequados. Uma das coisas que o sistema inquisitório introduziu foi um mecanismo de recursos inadequado, absolutamente ultrapassado. Ele é tão inapropriado que foi sendo superado. Têm alguns recursos que não se utiliza mais ou que são mal utilizados. Isso provocou uma grande defasagem que acabou levando a um uso excessivo dos Habeas Corpus. O Habeas Corpus é usado, hoje, como substitutivo dos recursos. De um lado, é uma solução. De outro lado, um desastre. Pela própria natureza, o pedido de Habeas Corpus acaba não sendo apreciado devidamente. No geral, quem tem grandes advogados acaba usando o Habeas Corpus e dá certo. A grande massa dos réus tem dificuldade até para ter advogados. Cria-se assim uma grande injustiça. Com os recursos, isso muda de figura. Isso tem que ser pensado sempre. O sistema de recurso no projeto está moldado e pautado diante de uma situação primordial: a mais ampla presunção de inocência. Há todo um rigor em relação ao tempo. Isso vai dar uma maior habilidade para os recursos. O anteprojeto propõe outra disposição para os Habeas Corpus para forçar que se use a via dos recursos e não dos HCs. Os tribunais são obrigados a olhar mais adiante para analisar a questão de fundo.
Fonte: Conjur
Nenhum comentário:
Postar um comentário