O artigo que segue é de autoria do juiz e escritor Marcelo
Semer e foi publicado originalmente na coluna do blogueiro no Terra Magazine.
A revelação da grave doença do ex-presidente Luis Inácio Lula
da Silva trouxe, infelizmente, bem mais do que uma onda de solidariedade.
A ira, o rancor e até um inacreditável entusiasmo
ultrapassaram todos os limites do bom senso, descortinando um ódio de classe
que, descobriu-se, ainda continua exageradamente impregnado.
O líder da juventude do PSDB usou o Twitter para equiparar
jocosamente a luta de Lula contra o câncer a suas disputas eleitorais,
lembrando sintomaticamente de "duas derrotas para FHC".
A jornalista Lúcia Hipólito não se constrangeu ao atribuir,
sem qualquer autoridade, a doença a um suposto alcoolismo do ex-presidente -que
estaria pagando agora o preço por todas que tomou.
No Facebook, uma hipócrita campanha se alastrou pela classe
média bem nutrida provocando Lula a se tratar em hospitais do SUS, que
pouquíssimos deles frequentam, aliás.
Com uma indisfarçável satisfação e a suprema ironia da
desgraça, utilizaram a mais drástica das oportunidades para menosprezar a
importância social do ex-presidente. Depois, é lógico, de terem comemorado a
derrota do financiamento para a saúde pública.
A euforia com a doença alheia é ainda pior do que o próprio
câncer.
O cálculo político também.
Não demorou nada desde que o diagnóstico se tornou público,
para que os astrólogos da grande imprensa passassem a fazer suas assombrosas
previsões.
Lula estará afastado das campanhas municipais, prejudicará os
resultados de seu partido em 2012 e aqueles que dele dependerem vão ficar à
míngua. Enfim, uma nova história política começando a ser escrita.
São os mesmos futurólogos, no entanto, que cravaram o
mensalão como sua morte política, que desprezaram as chances de Dilma no começo
da campanha e sepultaram o kirchnerismo na Argentina junto com o ex-presidente
Nestor.
O que há de tão errado nas análises é que são frutos do
desejo, não do conhecimento. Apostas da esperança, não da lógica.
Não se viu campanha para que o empresário José Alencar, que
tratou de seu câncer na vice-presidência, frequentasse os hospitais públicos.
Fernando Henrique Cardoso criou a CPMF em seu governo para
vitaminar a saúde, mas quem teve coragem de exigir que sua esposa fosse tratada
no SUS, destinatário daqueles impostos?
Para muitos, Lula deve honrar sua origem pobre.
Não na hora de estimular transferências de renda ou
impulsionar acesso dos mais humildes às universidades públicas -que incomodam
ou dificultam o caminho da classe média.
Deve honrar sua origem de pobre vivendo como um pobre,
vestindo-se como um pobre, tratando-se como um pobre.
A trajetória de Lula deveria ser um orgulho para o país. Um
daqueles exemplos de como até um capitalismo mal ajambrado e uma democracia
censitária como a nossa permitem, vez por outra, tal ascensão.
Mas para quem está no andar de cima, é um ultraje que ele
tenha deslocado o foco do Estado para a pobreza, valorizado tanto os carentes,
estimulado, sobretudo, as regiões e as populações mais incultas.
Afinal, as entradas social e de serviço não podem jamais se
confundir num país de tantas casas-grandes e senzalas.
O recrudescimento do discurso dos colunistas do ódio, a
campanha eleitoral que beirou o terrorismo, a xenofobia rediviva, enfim,
colheram seus frutos.
E muitos daqueles que estimularam a política do tudo-ou-nada,
demonizando a figura de Lula, acostumando o público aos ataques pessoais mais
repulsivos, de repente se assustaram com os ecos de seus próprios leitores.
Lula não é um semideus. Não está isento de críticas por causa
da doença e não traz consigo uma história de vida sem defeitos ou perversões
-como, de resto, nenhum de nós.
Mas a delicada situação em que se encontra não é a melhor
oportunidade para que nos divorciemos de nossa humanidade.
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