“A justiça sustenta numa das mãos a balança que pesa o direito, e na outra, a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito” - Rudolf Von Ihering



terça-feira, 29 de setembro de 2009

Constituição foi usada para legitimar golpe















Na manhã do dia 28 de junho de 2009, um domingo, militares invadiram o Palácio Presidencial, com fundamento em uma ordem judicial que determinara a prisão do Presidente da República, Manuel Zelaya. Essa ordem judicial, por seu turno, decorria de um pedido formulado pelo Ministério Público de Honduras (Fiscalia General del Estado) em 26 de junho de 2009, perante a Corte Suprema de Justiça daquele país.

O Presidente, ainda trajando pijamas, foi colocado pelos militares em um avião que o levaria para a Costa Rica.

Naquele mesmo dia, o Congresso de Honduras ouviu a leitura de uma suposta carta de renúncia, que foi prontamente aceita. No entanto, o decreto, editado já no dia seguinte, destinado a formalizar a deposição do Presidente Zelaya, não citava a dita carta de renúncia (denunciada como falsa por Zelaya), mas a alegada violação de vários dispositivos constitucionais, sem, curiosamente, citar o famigerado artigo 239 da Constituição, adiante examinado.

A inusitada velocidade com que o Poder Judiciário de Honduras decretou a prisão de um Presidente eleito e em pleno exercício do cargo, as quase anedóticas circunstâncias de sua prisão, seguida do absolutamente inconstitucional exílio forçado do Chefe do executivo, além do aparecimento/desaparecimento de uma suposta carta de renúncia, já são fatores bastantes para despertar nos espíritos mais atentos a desconfiança de que, como diria um certo príncipe dinarmaquês, há algo de podre na República de Honduras.

Mas, diante da divulgação do posicionamento de operadores do direito, inclusive aqui no Brasil, no sentido de que não se estaria diante de um Coup d’Etat, mas, sim, de um inocente e normal processo de sucessão constitucional, parece oportuno acrescentar algumas reflexões e argumentos de índole jurídica.

Primeiramente, é preciso esclarecer que, ao contrário do afirmado alhures, e ao revés do que ocorre em várias ordens constitucionais, não cabe ao Congresso Nacional de Honduras examinar se há motivo para a instauração de processo contra o Presidente da República. É que o dispositivo constitucional que previa tal atribuição (artigo 205, 15) foi revogado pelo Decreto 175/2003, de 28 de outubro de 2003.

Assim, aparentemente, tendo em vista o disposto no artigo 313, 2, da Constituição em foco, cumpriria ao Poder Judiciário processar e julgar o Presidente da República.

Contudo, o simples fato de a Corte Constitucional deter a jurisdição para processar e julgar o Presidente da República não significa, evidentemente, que não esteja submetida aos princípios e dispositivos constitucionais em vigor.

A Constituição de Honduras garante em seu artigo 82, como seria de se esperar em uma carta democrática, o direito à ampla defesa e o acesso ao Poder Judiciário. Contudo, a prisão do Presidente restou decretada em um domingo, apenas 48 h após seu requerimento pelo Ministério Público, deduzido em uma sexta-feira.

Esse fato demonstra o desapreço pelo princípio da ampla defesa, totalmente inviabilizada, até porque o Presidente, já preso, restou deportado imediatamente, sem que se tenha notícia, ao menos, da instauração de processo criminal contra os militares responsáveis por esse ato de truculência.

Impossível o exercício da ampla defesa ou, mesmo, qualquer defesa se o acusado é inconstitucionalmente exilado (cf. o artigo 102 da Constituição de Honduras) logo após sua prisão, que, também, restou decretada sem a mínima chance de defesa. Em verdade, tudo leva a crer que o presidente só descobriu a existência do pedido de prisão quando a decisão que a deferira já estava a ser executada, pois o processo tramitou sigilosamente até aquele momento, segundo comunicado da Justiça de Honduras.

Para que aqueles que não possuem formação jurídica possam ter uma idéia do tamanho da violência perpetrada, basta lembrar que o processo judicial que julgou a inconfidência mineira levou três anos para a leitura da sentença em 1792 e que, somente após a sua leitura, os condenados ao degredo foram levados à África.

O grau de desrespeito ao devido processo legal ocorrido nesse episódio é máximo. Não houve ampla defesa, nem contraditório e o exílio forçado garantiu que não houvesse acesso ao judiciário.

A discussão quanto à suposta violação do artigo 239[1] da Constituição hondurenha, agitada pelos defensores da tese da inexistência de golpe, torna-se, pois, prejudicada, diante da flagrante e rude violação ao due process of law.

Mesmo assim, cabe lembrar que também esse argumento não se sustenta. De fato, o próprio Decreto legislativo de deposição do Presidente Zelaya não menciona, dentre seus fundamentos, o dispositivo em questão, havendo o argumento sido levantado ex post facto (Cassel, 2009) e, mais importante, o plebiscito não se destinava à reforma do artigo 239, mas à convocação de uma Assembléia Constituinte[2].

Portanto, pretendeu o Presidente Zelaya, por meio da consulta popular abortada, invocar o poder constituinte originário, que, ao contrário do derivado, como se sabe, não possui qualquer compromisso com as cláusulas pétreas da constituição em vigor.

Contudo, da forma como se tem debatido a suposta violação ao artigo 239 da Carta hondurenha, tem-se a impressão, evidentemente equivocada, de que a referida consulta destinava-se à reforma constitucional, particularmente do artigo 239 em comento.

Nada mais falso. Seu objetivo, expressamente declarado, era consultar acerca da convocação ou não de uma Assembléia Constituinte que elaboraria, insista-se, uma nova Constituição.

Brevemente delineados os evidentes vícios do processo judicial, resta analisar o papel do Congresso Nacional de Honduras e verificar se o decreto legislativo que culminou na deposição do Presidente exilado, proferido no dia seguinte ao de sua prisão e exílio, estaria de acordo com a ordem constitucional vigente naquele país.

O primeiro aspecto, já ressaltado, é o curioso fato de que o Congresso primeiro aceitou uma suposta carta de renúncia - evidente falsificação que, depois, deixou de ser levada em conta pelo próprio governo de fato - mas abandonou tal alegação ao decretar a deposição do Presidente, preferindo fundamentar o decreto em vários artigos da Constituição hondurenha (artigos 1, 2,3,4, 205, 220 numeral 20, 218, 242, 321, 322, 323, para ser exato), mas, novamente, não o controvertido artigo 239 (Cassel, 2009).

O segundo aspecto é o de que a Constituição de Honduras não prevê o processo de impeachment, cumprindo, assim, ao Poder Judiciário, não ao Legislativo, a tarefa de processar e julgar o Presidente da República.

Norma C. Gutiérrez, em seu pequeno estudo denominado “Honduras: Constitutional Law Issues”, divulgado no sítio eletrônico do Congresso dos Estados Unidos da América, alega - após reconhecer que o mecanismo do impeachment restou expurgado da Constituição de Honduras por força do já mencionado Decreto 175/2003 - que o Congresso Nacional de Honduras utilizara o poder conferido pela Constituição para interpretar as próprias normas constitucionais para, interpretando o disposto no artigo 205, 20 - cujo texto trata, apenas, da aprovação ou desaprovação da conduta administrativa do Poder Executivo - concluir que o Congresso poderia decretar a deposição do Presidente.

Note-se, novamente, que esse Decreto data do dia 29 de junho, apenas um dia após o exílio forçado do Presidente que, assim como ocorrera no processo judicial, não teve qualquer oportunidade para apresentar defesa perante a Casa Legislativa.

Para além de todas as conjecturas jurídicas, salta aos olhos que em um regime constitucional normal não é possível que o Poder Legislativo, em apenas 24h, delibere o impeachment de um Presidente da República que, ainda por cima, estava exilado, máxime quando a própria Constituição não prevê a existência de tal instrumento.

Admitir esse procedimento como minimamente constitucional e democrático é fazer pouco caso dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, transformando todo o sistema constitucional, esvaziado de seus princípios mais relevantes, em uma grotesca pantomima.

Parte da imprensa brasileira insiste em defender o indefensável, o que revela um preocupante esquecimento de nossa própria história recente, em que a constituição e a ordem constituída foram usadas e abusadas para justificar e emprestar legitimidade ao que, na verdade, era um golpe.

Ainda ecoam as malsinadas palavras do então presidente do Congresso Nacional, Moura Andrade, proferidas em 1964: “assim sendo, declaro vaga a Presidência da República. E, nos termos do artigo 79 da Constituição Federal, invisto no cargo o presidente da Câmara dos Deputados, sr. Ranieri Mazzilli. Está encerrada a sessão.” Deveria ter dito: está encerrada a democracia.

É reconfortante saber que o golpe de estado já foi condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e sua Comissão Interamericana de Direitos Humanos, além da Organização das Nações Unidas (ONU), da União Européia e grande quantidade de países.

Justifica-se, pois, a esperança de que a era dos golpes esteja, realmente, chegando ao fim, ao menos na sofrida América Latina.

Fonte: Conjur
 

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