“A justiça sustenta numa das mãos a balança que pesa o direito, e na outra, a espada de que se serve para o defender. A espada sem a balança é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do direito” - Rudolf Von Ihering



quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Beijo na boca é crime?



















Via Blog do Prof. Damásio

Vários alunos e leitores me têm pedido que coloque minha opinião sobre o recente episódio do italiano preso em flagrante, numa praia de Fortaleza, acusado de ter dado um “selinho” em sua filha menor, de 8 anos. Já escrevi sobre o assunto neste blog (Do “selinho” amoroso ao beijo delituoso). No dia 18 de outubro de 2009, domingo, acordei com vontade de escrever mais algumas linhas a respeito do caso.

O turista, em seu favor, alegou que não via nada de censurável no gesto, uma vez que, na Itália, é absolutamente normal um pai manifestar, dessa forma, seu afeto por um filho ou filha.

Que pensar disso?

De início, ressalvo que não conheço, do fato, senão os pormenores genéricos divulgados pela grande imprensa. Sem a leitura dos autos não se deve dar palpite. Pelo menos foi isso que aprendi, para nunca mais esquecer, com o Prof. Octávio Stucchi, em suas aulas de Processo Civil. Vou, portanto, fazer considerações gerais, “descompromissadas”, como se diz hoje em dia. Se tivesse acesso a pormenores documentados, talvez fosse bem outra minha posição. Mas já seria um parecer.

Inicialmente, há que distinguir o beijo lascivo do simplesmente afetuoso e do chamado social. No Latim, do que me restou das aulas do meu mestre Padre Permino, no antigo Colégio São Bento, de Marília, há duas palavras bem distintas para não permitir confusão: basium, o beijo lascivo, destinado a produzir ou estimular prazer sexual, e osculum, o beijo não lascivo, simplesmente afetuoso ou, por extensão, social.

No Português, existem as duas expressões, ósculo e beijo. A primeira nem tente usar, sob pena de ser qualificado como ultrapassado. E com razão. A distinção entre elas já diverge do sentido original latino. Ósculo é palavra mais nobre, literária, quase erudita e, por isso mesmo, pouco empregada na atualidade. E beijo pode designar tanto o lascivo quanto o que não o é.

Do original latino se derivaram o baiser francês, o beso espanhol e o baccio italiano. Não conheço suficientemente esses três idiomas para dizer, sem maiores pesquisas, que tenham a mesma largueza e imprecisão de sentido que tem o beijo, na boa língua de Camões, de Machado e de Guimarães Rosa. Observo, também, que a própria ideia de lascívia, geralmente associada ao beijo dado na boca, é um tanto imprecisa. Na nossa cultura luso-brasileira, essa associação é imediata. Em outras, entretanto, pode não ser tão certa. Lembro-me de ter lido, em canções medievais, sobre as quais me interessei em certa época, relatos de expansão de afeto e/ou admiração. Exemplos: da mãe em relação a um filho ou de um cavaleiro a outro cavaleiro ferido em combate. Nesses casos, nos quais havia o ósculo bucal, demonstrava o contexto não existir o menor sinal de incesto ou homossexualismo.

Mesmo o beijo facial entre homens, do qual no Brasil não temos o costume de praticar, é frequente em alguns países da Europa. Recordo que, nos anos 1950 ou 1960, nas cidades de Marília e Bauru (SP), quando nos cinemas eram apresentados documentários sobre encontros de líderes políticos europeus, causava sempre grande hilaridade, na plateia, eu no meio, ver Presidentes de República descerem dos seus aviões e, ao serem recebidos pelo Presidente anfitrião, trocarem beijos nas duas faces (a famosa accolade dos franceses). Recordo que, em faculdade de Direito do interior paulista, há muitos anos, após saudar Giuseppe Bettiol, grande penalista italiano, a quem denominei “O homem no minarete”, recebi dele dois formidáveis beijos de agradecimento na face, o que causou certo impacto na plateia.

No caso do turista italiano, até que ponto terá ele noção de que, no Brasil, conforme as circunstâncias, seu gesto podia ser mal interpretado? E considerado num sentido que o tornaria acusado de crime hediondo?

Um fato é certo, a meu ver. Se foi um simples “selinho” que deu, daqueles da Hebe Camargo, creio excessivo classificá-lo, no estrito rigor de uma interpretação teleológica e em conformidade com a Carta Magna, da Lei n. 12.015, de 10 de agosto deste ano, que reformulou o Código Penal (CP) no Título que definia os “crimes contra os costumes”, de estupro de vulnerável, hediondo e passível de punição com reclusão, de 8 a 15 anos.

O estupro, hoje figura típica nova, a nos fazer esquecer os antigos estupros e atentados violentos ao pudor, abrange os atos libidinosos e não é mais crime contra os costumes: trata-se de crime contra a dignidade sexual, com fundamento constitucional (ofensa à dignidade humana). Assim, nos termos da norma, somente pode haver estupro quando o fato ofender a dignidade da pessoa humana, novo nomen juris do Título normativo. O simples “selinho”, pois, o rápido encostar dos lábios de duas pessoas, embora constitua conduta inconveniente em determinadas circunstâncias, como entre pai e filha menor, pode dar margem a interpretações maliciosas, embora possa indicar ou conter em si convite a outras práticas de natureza sexual. Sob esse aspecto, não acredito que possa ser enquadrado nos termos da referida lei. Já o beijo claramente lascivo, de natureza diferente do que o praticado no simples “selinho”, é fato bem diverso.

A nova lei incriminadora requer seja interpretada à luz da Carta Magna. Não é suficiente vítima menor de 14 anos nem que, eventualmente, tenha sido caso de um beijo “roubado”. Assim, não basta que o sujeito passivo seja sexualmente vulnerável nem mesmo que o fato esteja inserido no Capítulo penal dos delitos contra a liberdade sexual. É necessário que se atenda ao elemento normativo constitucional e previsto como denominação do Título VI do estatuto criminal, isto é, que o fato se apresente ofensivo ao bem jurídico “dignidade sexual”.

Vê-se que, na sua expressão gramatical e literal, desprezada a Carta Magna e o novo nomen juris do Título VI do CP, o fato imputado ao turista podia mesmo valer-lhe uma pena mínima de 8 anos de reclusão. Absurdo. Se, em vez de ter beijado a filha menor, tivesse simplesmente matado alguém, a pena mínima seria de 6 anos.

Pergunto, como questionou o poeta:

– Entender, quem há de?

Compartilhar

Nenhum comentário: