Está no perfil do empreendedor detectar carências no mercado e se preparar para supri-las. Não é o que acontece com a maioria dos candidatos a seguir carreira no Direito. Mais do que enfrentar os múltiplos desafios do mercado de trabalho, os novos bacharéis estão em busca de estabilidade — a estabilidade que só o serviço público garante.
O professor de Direito Flávio Martins reforça sua tese com números: segundo ele, 80% dos estudantes de Direito hoje em dia têm como objetivo prestar concurso público para fazer carreira, de preferência na magistratura ou no Minstério Público. Um inusitado surto de espírito público e vocação para servir ao Estado que tomou conta das novas gerações? Menos. O interesse é mesmo se proteger das incertezas do mercado em carreiras com inamovibilidade garantida e salários nada desprezíveis.
Nada contra os sonhos planejados da juventude. Flávio Martins, que é coordenador do curso de Direito da Unisal (Centro Universitário Salesiano de São Paulo) e dos cursos preparatórios da rede LFG só faz reparo à uma relativa falta de ambição intelectual. “Muitos quando chegam ao cargo almejado, deixam de buscar atualização profissional e ficam estagnados”, afirma, apontando para a falta de interesse de juízes e procuradores em fazer pós-graduação.
A familiaridade no tema que adquiriu com uma vivência de mais de 10 anos na preparação de candidatos para os exames de ingresso na advocacia ou nas carreiras públicas, levou o professor a uma conclusão desconcertante: o Exame de Ordem é tão dificil quanto as provas de concursos públicos. E com a exigência de prática jurídica para novos juízes ou promotores, o Exame de Ordem passou a ser uma quase exigência também para quem quer seguir essas carreiras.
Antes de virar professor de Direito, o sonho de Flávio Martins era viver de música. De certa forma, ele conseguiu isso. Há 10 anos ele compõe canções e paródias para ajudar os alunos na memorização de matéria jurídica de suas aulas. A sua banda foi batizada com o nome de Jurisdissom, onde qualquer semelhança não será mera coincidência. “Eu só não me tornei músico porque o público não permitiu, mas fico orgulhoso de saber que minha música já foi tocada para mais ou menos 20 mil pessoas” disse ao fazer referência ao ‘Dia D’, a revisão geral de matérias promovida pelo LFG em todos os estados brasileiros um dia antes da prova da OAB.
Nascido em Guaratinguetá (SP) há 33 anos, Flávio Martins é especialista em Direito Constitucional e Penal e tem mais de 10 livros publicados. Um deles, Estude Direito e memorize direito (Saraiva), está na sua 3ª edição. Sua obra mais recente é Remédios Constitucionais, da editora Inpe. Em 2008, ganhou o pêmio Prêmio Paulo Freire, concedido pela Câmara de Vereadores de Lorena aos educadores que desenvolvem projetos inovadores.
Participaram da entrevista as jornalistas Aline Pinheiro e Fabiana Schiavon.
Leia a entrevista:
ConJur — Por que tem cada vez mais gente fazendo concurso público?
Flávio Martins — O principal fator é a busca de estabilidade. Os alunos procuram os concursos não por paixão pela carreira X ou pela carreira Y, mas pela estabilidade que o cargo público oferece, que é maior em relação a qualquer outra área de atividade. Na advocacia, o aluno pode até prosperar mais, mas estabilidade mesmo quem dá é a carreira pública. Outro fator é que a advocacia não é tão dinâmica no interior como nas capitais. Por isso, o serviço público é muito procurado no interior. Na faculdade que coordeno, a Unisal (Centro Universitário Salesiano), que fica em Lorena [a 180 km da capital], 80% dos alunos de Direito têm por objetivo prestar concurso público. Posso afirmar que, para a grande maioria dos bacharéis do Brasil, o índice é o mesmo. O concurso público é o objetivo.
ConJur — Quais as carreiras escolhidas pela maioria?
Flávio Martins — Magistratura ou Ministério Público. Alguns alunos de Direito, quando estão chegando ao final do curso, começam a ter outras expectativa. Os que que têm por objetivo prestar concurso público começam a se preparar e definir a carreira a ser seguida logo no início da faculdade. Vejo poucos alunos dizerem que o sonho sempre foi advogar. Esse dinamismo não é comum no Direito.
ConJur — O aluno que passa no concurso público continua buscando atualização profissional?
Flávio Martins — Posso citar um exemplo: recentemente um ocupante de cargo público se ofereceu para lecionar na Unisal. Ele já deu aulas e está na carreira publica há bastante tempo. A primeira pergunta que fiz foi sobre titulação. Ele respondeu que terminou a graduação em Direito e depois seguiu na carreira pública. Então, infelizmente, o que percebi é que ele atingiu o almejado cargo público e não buscou atualização profissional.
ConJur — Mestrado é obrigatório para quem quer dar aulas no curso de Direito?
Flávio Martins — Não é obrigatório, mas hoje um graduado não pode lecionar em faculdades, pelo menos no curso de Direito. O Ministério da Educação mudou essa regra no início deste ano. Agora é preciso ter pelo menos especialização. A faculdade que tem um graduado como professor já recebe nota mínima do MEC. Esse foi o jeito encontrado para evitar que graduados lecionem no curso de Direito. Então, infelizmente, o que percebi é que ele atingiu o almejado cargo público e não buscou coisas novas.
ConJur — É comum essa estagnação profissional na carreira pública?
Flávio Martins — Não é regra, mas, muitas pessoas, depois que passam nos concursos, não estudam mais. Elas não procuram se atualizar e deixam de crescer. Não se pode dizer que isso acontece por falta de acesso ou falta de oportunidade. Outro exemplo está nas bancas dos concursos públicos. Desembargadores e procuradores que fazem parte delas escrevem muito pouco. Dá impressão que a carreira publica é afastada da pesquisa e isso não é verdade. O bom profissional tem de fazer as duas coisas.
conjur — A falta de atualização pode ser conseqüência da estabilidade?
Flávio Martins — Posso dizer que a estabilidade está envolvida nesse pensamento, mas não é só. Esse fenômeno não funciona na advocacia e no magistério. O advogado para se manter no mercado precisa se atualizar cada vez mais. Eu, como professor, também tenho de inovar e pesquisar sempre. Mas, não é verdade que no serviço público estão os maus profissionais e na iniciativa privada estão os melhores profissionais. São carreiras distintas e não podemos compará-las.
ConJur — Existe uma maneira de mudar esse cenário no serviço público?
Flávio Martins — Existem mecanismos para prestigiar quem faz pesquisa. Mas, volto a dizer que o mercado é diferente e não dá para implementar os mesmos mecanismos da iniciativa privada no serviço público. O que dá para fazer é o controle da produtividade, que está previsto na Constituição e as Corregedorias já fazem. Se o servidor for um bom profissional ele pode ser premiado por isso.
ConJur — O servidor recebe algum tipo de estímulo por parte do Estado?
Flávio Martins — Sim. A própria Constituição prevê isso. Existe, por exemplo, as chamadas promoções por merecimento. O problema que esse merecimento acaba sendo, muitas vezes, político. Mas, volto a dizer que o mercado é diferente.
ConJur — Qual o perfil dos alunos que procuram os cursinhos preparatórios para entrar no serviço público e dos que buscam para o Exame de Ordem?
Flávio Martins — Para o candidato do concurso público, o Exame de Ordem se tornou quase obrigatório. Para ser juiz ou promotor é necessário três anos de atividade jurídica. E a atividade jurídica por excelência é a advocacia. Por isso, prestar o Exame de Ordem e advogar virou um rito de passagem para quem pretende seguir carreira pública. Além disso, o Exame de Ordem não é muito diferente das provas para concurso público. Se comparar o último exame da OAB, com a prova para primeira fase da magistratura, o da OAB foi muito mais difícil. É claro que nota de corte é diferente. Na Ordem você precisa acertar 50 e na Magistratura 79 para passar da primeira para segunda fase. Mas o aluno que se prepara para a OAB consegue se preparar também para o concurso público.
ConJur — É comum o candidato desistir do concurso público durante os três anos de atividade jurídica para advogar?
Flávio Martins — A OAB não é obrigatória. É a atividade jurídica por excelência, mas o aluno não precisa seguir esse caminho necessariamente. Ele pode ser auxiliar de um juiz, fazer três anos de estágio por exemplo. É muito difícil esse aluno mudar de ideia. A maioria faz o Exame de Ordem mesmo como rito de passagem. Quem quer prestar concurso já entra predestinado na faculdade. É bem verdade que não temos de dizer que um jovem é inexperiente e um velho é maduro. Mas é preciso ter experiência. Como um jovem que nunca beijou na boca pode decidir a dissolução de uma família?
ConJur — No último Exame de Ordem só 38% dos inscritos passaram na primeira fase. A que se deve esse resultado?
Flávio Martins — Agora, São Paulo faz parte do exame unificado. A prova do último exame foi diferente. A prova paulista exigia conhecimento de leis. Já a atual, da Cespe, exige conhecimento de jurisprudência, doutrina também. Assim, quando a prova fica mais difícil é natural que esse índice caia.
ConJur – São Paulo tem mesmo as melhores faculdades do país?
Flávio Martins — É possível, mas em São Paulo se tem de tudo. Tem as melhores e tem também as piores. O número de alunos é muito grande. O vestibular, infelizmente, não seleciona mais. Por isso, a prova da OAB é extremamente necessária. Digo mais: se alguns advogados forem prestar o Exame hoje muitos não passam. O Direito tem uma qualidade que outros cursos não têm. A prova serve como uma peneira, uma seleção de profissionais preparados.
ConJur — O que o senhor acha da proliferação dos cursos de Direito?
Flávio Martins — Não sou contra. Muito pelo contrário, o índice de pessoas que chegam ao ensino superior ainda é muito baixo. O problema é que não podemos deixar que cursos que tenham caráter meramente mercantil permaneçam no mercado. Existem alunos que saem da faculdade sem saber escrever. Antigamente, a prova da OAB era mais simples, apenas uma formalidade. Hoje é uma necessidade. Existe o lado bom e o ruim da democratização dos cursos de Direito. O futuro dessas faculdades medianas será decidido pela seleção natural. Vários cursos estão fechando por falta de aluno. A mídia colabora muito com isso por divulgar os índices e o desempenho das faculdades no Exame de Ordem.Com isso, o aluno irá pensar duas vezes antes de procurar essa instituição. Ele vai se questionar de que adianta pagar cinco anos para ser só um bacharel.
ConJur — O ensino superior está em crise?
Flavio Martins — Sim. Até porque o aluno já sabe escolher melhor a instituição. As faculdades que estão muito ruins no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) ou com restrições do MEC passam por sérios problemas financeiros. Muitos cursos estão fechando por causa da seleção natural.
ConJur — Existem faculdades com excelentes professores, mas que formam alunos despreparados. Como controlar a qualidade dos cursos de Direito?
Flavio Martins — Nesse caso, a instituição pública tem tarefa mais fácil que a privada. O aluno na pública chega como uma jóia apenas para ser lapidada e o professor tem a função de um mero joalheiro. Nas instituições privadas, muitas vezes, o professor precisa ser um alquimista. Ele precisa inventar a jóia. O nível intelectual dos alunos que chegam à faculdade é ruim. A deficiência começa lá no ensino de base. O MEC, no entanto, tem controlado isso. No ano passado, a faculdade que teve índice muito baixo,teve o número de vagas reduzido. A OAB também tem um selo de qualidade, o OAB Recomenda. Dos mais de mil cursos no país, só 50 receberam o selo. Há estado que nem instituição federal conseguiu passar pelo crivo da OAB.
ConJur — É possível passar no Exame de Ordem sem fazer cursinho preparatório?
Flavio Martins — Não é impossível, mas acredito que esse número no país seja cada vez menor. Sem contar que o acesso aos cursinhos está cada vez msi fácil e o aluno sempre os procura para se atualizar.
ConJur — Os cursinhos preparatórios acabam assumindo um papel que é da faculdade?
Flavio Martins — O papel é atualizar o candidato quando ele sai da faculdade. O aluno estudou sobre uma determinada lei no primeiro ou segundo ano do curso. Chega ao final da faculdade, a lei mudou e o aluno nem lembra mais. O Direito muda muito. A primeira virtude do cursinho é preparar, atualizar o aluno. Os cursinhos têm professore mais didáticos e dinâmicos. O professor tem que ter o dom para consolidar as informações e dar condições para que o aluno passe no concurso público. A faculdade não prepara alunos para concurso público. Ela prepara o aluno para ser um bom bacharel. Para ter uma noção global das coisas.
ConJur — Os alunos procuram os cursinhos para aprender ou para decorar?
Flavio Martins — Ninguém consegue passar em concurso público só decorando. Algumas coisas esse aluno tem de memorizar como datas, idades etc. Então, nada melhor que aprender técnicas de memorização.
ConJur — Quais são as dicas para quem quer passar num concurso público?
Flávio Martins — Se preparar a partir de agora. Não importa quando é esse agora. Se for no primeiro ano da faculdade, então, o aluno precisa começar a se preparar a partir daquele momento, estudando com os olhos voltados para aquilo. Caso o aluno já seja formado, deve se preparar a partir daquele momento. Para o aluno passar no Exame da OAB ou num concurso público, ele não pode ser bom só numa disciplina. Para ser juiz ou promotor não é assim. Para ser advogado também não. É preciso ter um conhecimento geral.
ConJur — Quais técnicas de memorização os cursinhos costumam ensinar?
Flávio Martins — Há 10 anos estudo como melhorar a memória para o Direito. Em toda profissão é interessante e, no Direito, também. Há técnicas seculares de memorização e uma delas é a técnica da repetição continuada. Normalmente, 90% das pessoas que aprenderam tabuada, aprenderam dessa forma. Essa técnica uso para o aluno memorizar, por exemplo, as Constituições brasileiras. Existem outras técnicas também, de relações e associações. O cérebro humano é muito pouco explorado. Então, nesses anos, eu utilizo técnica de memorização através da música.
ConJur— Como o senhor aplica as técnicas de memorização
Flávio Martins — Com ajuda da minha banda. Ela foi criada, há 10 anos, com o intuito de fazer canções complementares para as aulas. Parece uma brincadeira, mas são cientificas essas técnicas de canções para memorizar. O ser humano tem pelo menos três formas de cognição. A forma visual ele aprende lendo. No Direito, é a técnica que os alunos mais exploram. Existem outras formas também de aprendizado como as formas sensoriais. Uma delas é a forma auditiva e a canção tem uma virtude se comparada a outros métodos. Toda pessoa consegue guardar diversas músicas na cabeça. Então uso essa técnica para armazenar informações relevantes e jurídicas. Vale destacar que ninguém passará em concursos ou Exame de Ordem apenas cantando, mas essa técnica ajuda muito.
ConJur — O aluno que assiste aula telepresencial, obtém o mesmo aproveitamento do que assiste aula presencial?
Flávio Martins — Existem pesquisas que apontam que o desempenho do aluno telepresencial, por incrível que pareça, é melhor em relação ao presencial. Talvez porque ele não tem a mesma interação se estivesse numa sala repleta de alunos. O aluno telepresencial geralmente é mais focado. Ele manda suas perguntas por e-mail e se concentra mais na aula. Essa é uma das principais vantagens da democratização dos cursinhos. Na minha época ou eu estudava sozinho lá no interior ou tinha de me mudar para um grande centro. Agora com os cursinhos telepresenciais não temos mais esse problema. Os cursos de graduação também podem ser ministrados à distância, mas o Ministério da Educação autoriza que apenas 20% do curso seja nessa modalidade.
Fonte: Conjur
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