Entre os poucos minutos do meu (nosso) precioso tempo, consegui ler essa matéria, que julguei ser extremamente importante compartilhar com os amigos (as) considerando que o tema merece uma minuciosa reflexão. Não tenho hábito de publicar textos longos, mas esse vale a leitura.
Publicado no sítio da AASP:
"Venho muy respeitosamente à presença de vossa excelência pleitear a detração de pena por fatos e motivos que passarei a expor". "A jurisprudência é mansa no que tange aos direitos adquiridos e a coisa julgada e ninguém pode ser coagido a pagar mais do que deve". Ao contrário do que possa parecer, os trechos citados não estão em processos judiciais, mas são partes de cartas escritas por presidiários e encaminhadas ao Supremo Tribunal Federal (STF). As correspondências, que até pouco tempo ficavam esquecidas em armários da Corte, são hoje "transformadas" em habeas corpus e representam 23% dos pedidos de liberdade impetrados no Supremo. No ano passado, dos 4,7 mil habeas corpus que deram entrada no Supremo, 1,2 mil tiveram origem em cartas de presos.
A análise e resposta às cartas de presos é realizada pela Central do Cidadão, departamento criado em 2008, após tentativas frustradas de implantação de uma ouvidoria no Supremo. A central recebe demandas, não apenas de detentos, mas de toda a sociedade. Uma equipe de 12 funcionários lida com os mais diversos temas, como informações sobre andamento processual, consultas sobre procedimentos para divórcio, pedidos de empregos e solicitações de idosos para apressar julgamentos. As cartas provenientes dos presídios, no entanto, representam 70% das correspondências que chegam à Central do Cidadão, a maioria delas com pedidos de assistência jurídica e progressão de regime penal.
De acordo com Marcos Alegre Silva, secretário substituto da Central do Cidadão, algumas cartas são mais bem redigidas do que petições de muitos profissionais. Segundo ele, a maior parte das correspondências está em "juridiquês" e segue o modelo das petições elaboradas pelos advogados. "Há quase três anos minha apelação de habeas corpus por excesso de prazo está parada sem julgamento por falta de um advogado", a frase é o início, por exemplo, de uma dessas cartas, proveniente da penitenciária de Lucélia, em São Paulo. A correspondência contém ainda reflexões como "entendo que a sociedade perderia mais com a condenação do que com a absolvição do acusado que seria totalmente corrompido na prisão, quando o objetivo da lei penal é recuperar seus infratores". E ainda, uma citação de Gandhi: "Se ages contra a justiça e eu te deixo agir, a injustiça é minha". Diversas cartas são repletas de frases bíblicas e outras mais informais, como essa, enviada do Presídio Central de Poá, no Rio Grande do Sul, também pleiteia um habeas corpus por excesso de prazo: "Que Deus abençoe este pedido, que é minha vida, esperança, amém !!!".
Já um presidiário da Penitenciária Dr. Paulo de Campos Luciano, em Avaré, São Paulo, por exemplo, tenta a progressão do regime fechado para o semi-aberto: "Venho cumprindo pena desde 8/8/2000, pena que totaliza 26 anos e oito meses...". No caso, o detento precisaria cumprir um sexto da pena em regime fechado, ou seja, cerca de cinco anos, mas após dez anos ainda não teve o seu pedido de progressão julgado.
De acordo com o secretário substituto da Central do Cidadão, pela falta de advogados públicos, alguns presidiários se especializam no serviço, que passa a ser uma fonte de renda na cadeia. O Supremo só pode julgar habeas corpus provenientes do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A maioria das cartas que chegam à Corte, porém, envolvem habeas corpus que deveriam ser julgados nos Tribunais de Justiça (TJs) do país e varas da primeira instância do Judiciário.
A Central do Cidadão transforma as cartas em processos, já contendo as informações necessárias para a apreciação. Em seguida, a correspondência é distribuída por sorteio a um dos ministros, que pode julgar de pronto ou remeter um ofício ao tribunal responsável. "Funciona como uma sugestão moral do ministro do Supremo ao juiz", diz Marcos Alegre Silva. Em muitos casos, a estratégia vem dando resultados. Pelos murais da Central, há fotos de crianças, filhas de presos, que conseguiram a progressão de regime depois de enviar uma carta ao Supremo. "Um dos presos nos respondeu dizendo que, ao receber uma resposta de que seu processo teve andamento, foi se esconder nas cobertas para chorar, já que isso não é permitido na prisão", afirma Silva.
Também chegam ao Supremo Tribunal Federal muitas denúncias de maus-tratos e da situação precária dos presídios, o que é mais difícil de ser resolvido. Foi o caso de uma carta assinada por 30 presos da cadeia de Monte Sião, em Minas Gerais, que pediam providências urgentes para acabar com agressões sofridas, melhorar as condições alimentares, assistência médica e jurídica. A carta fez com que o ministro Gilmar Mendes enviasse um ofício à comarca. Em janeiro, o juiz Milton Piagioni Furquim, responsável pela vara de Monte Sião enviou uma comissão formada por representantes da sociedade para averiguar as denúncias. De acordo com o juiz Furquim, a cadeia da cidade deveria receber somente presos provisórios, mas pela falta de vagas nos presídios mais próximos, com o de Belo Horizonte, eles acabam cumprindo a pena lá mesmo. "Estamos tomando medidas para interditar a cadeia, pois não cabem mais presos", diz o juiz Furquim. De acordo com ele, o real estado da cadeia é informado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mensalmente e anualmente à Corregedoria Nacional de Justiça. Mas, segundo o magistrado, nada foi feito até hoje.
Presidiários conseguem uma segunda chance no Supremo
Muitos presidiários do regime semi-aberto, que retornam ao presídio à noite, e do sistema aberto, que cumprem regras no próprio domicílio, têm aprendido literalmente como é estar do outro lado da situação. O Supremo Tribunal Federal (STF) vem contratando essas pessoas para trabalhar em suas dependências, inclusive na Central do Cidadão, onde recebem as cartas dos presídios e, por vezes, auxiliam na elaboração de habeas corpus. Atualmente, 35 presidiários trabalham na Corte.
Um desses detentos, que prefere não se identificar, começou a trabalhar no Supremo em abril do ano passado. Foi preso por tráfico de armas e encaminhado ao presídio da Papuda, em Brasília, onde cumpriu quatro anos em regime fechado, depois de ter sido baleado com cinco tiros no ato da prisão. "Na minha família foi um choque, o primeiro caso de alguém preso", diz. No presídio, resolveu tomar outro rumo. Começou a escrever peças de teatro, encenadas pelos colegas de prisão, e obteve autorização, na época, para apresentá-la em teatros. "Era uma forma de resgatar um pouco da nossa humanidade", diz.
Com formação em filosofia e pai de dois filhos, o detento foi selecionado para trabalhar no museu do Supremo após passar para o regime semi-aberto. "Uma das exigências é que eles também comecem a estudar, muitos querem seguir a carreira de direito", afirma Daniel Teles da Silva, chefe da seção de responsabilidade social, que realiza as contratações. O detento pretende seguir trabalhando na área cultural e lançar um livro de poemas, caso algum dia tenha uma oportunidade. "Somos condenados a duras penas, uma pela Justiça e a outra pelo preconceito da sociedade", afirma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário